Será um delito nascer negro no Brasil?
A provocação trazida pela socióloga Vilma Reis em seminário da USP, resgata questionamento colocado pelo TEN no século 20 e que ainda reverbera até os dias atuais
Na primeira metade do século 20 (1944) surge no Rio de Janeiro o Teatro Experimental do Negro, o TEN, idealizado por Abdias do Nascimento (1914-2011). O projeto visava a valorização da população negra e da cultura afrodescendente através da dramaturgia para defender a “verdade cultural do Brasil”. As atrizes e atores eram, inicialmente, pessoas simples, que o TEN habilitou a enxergar criticamente os espaços destinados às pessoas negras no contexto nacional.
Foi o TEN que lançou a pergunta que intitula esta matéria e que ainda hoje traz inquietações sobre a realidade da população negra. E foi a socióloga Vilma Reis quem trouxe a questão para o debate “Vidas negras importam – Construção, desmonte e reconstrução das políticas de igualdade racial no Brasil”. A coordenadora da iniciativa, Bel Santos Mayer, mediou o diálogo, que teve ainda a participação da primeira ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir (2003-2008), Matilde Ribeiro, atualmente professora-adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab), e do ativista social, professor de história, Douglas Belchior.
“Será um delito nascer negro no Brasil?”, indagou a também feminista e ativista social, Vilma Reis, estabelecendo um paralelo entre a questão colocada pelo TEN e a pergunta feita pela Frente Negra Brasileira em 1931: “Quando é que esse país iria existir para nós?”. Segundo ela, são questionamentos importantes que persistem e marcam a realidade e a experiência da população negra brasileira. Vilma elogiou o projeto “Ciclo de Memórias da Política Institucional Brasileira de Direitos Humanos”, do qual o debate é parte, e disse que “esse é o modelo de universidade com que sonhamos”. O projeto foi iniciado em 2021, pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH), do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP).
Para contribuir com o debate, o professor da Faculdade de Educação da USP e integrante do GPDH, Paulo Henrique Fernandes Silveira, destacou uma afirmação do professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Wolfgang Leo Maar, extraída de artigo publicado no site A terra é redonda, em que ele diz: “Num país com séculos de escravismo, a questão social se sobrepõe como prioridade à experiência política”. Bel Santos Mayer lembrou que há anos os movimentos negros vêm dizendo, repetindo, alentando sobre a incompatibilidade entre democracia e racismo com a máxima de que “enquanto houver racismo no Brasil, não haverá democracia”.
Criação da Seppir - A socióloga e candidata a deputada federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Vilma Reis, disse que o movimento negro é o principal responsável pela instalação da Seppir em 21 de março de 2003. “Nós criamos naquele ano, um Brasil para fazer políticas públicas em escala para a população negra”, afirmou. Matilde Ribeiro falou que todo o processo de construção das políticas de igualdade racial representa um sonho coletivo. Para além das dificuldades institucionais, ela destacou que o grande desafio inicial foi definir o quê priorizar diante do volume de demandas reprimidas do segmento. À época, primeira gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ênfase foi dada à pauta quilombola, regulamentada através da lei 4887, que delineou a política de quilombo e o “Programa Brasil Quilombola”.
A participação de Douglas Belchior foi marcada pela demonstração de respeito às lideranças que o antecederam. “Grande parte das formulações que a gente defende agora são construções de mais de 40 anos, por lideranças que ainda resistem”, declarou o educador, que também é candidato a deputado federal pelo PT, um dos criadores do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neafro), e um dos articuladores da Coalisão Negra por Direitos, que reúne mais de 200 entidades do movimento negro de todo o país.
O debate
*A atividade integra o projeto “Ciclo de Memórias da Política Institucional Brasileira de Direitos Humanos”, iniciado ano passado, pelo Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDH), do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP). A proposta foi concentrada na abertura de espaço de diálogo com agentes públicos, desde o governo Itamar Franco, passando pelas gestões de Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Estes, considerados expoentes na elaboração de políticas públicas de direitos humanos no Brasil e referências na transmissão de uma memória institucional consagrada à lenta e incerta edificação de uma agenda consistente dessa temática.
Desde então, o Ciclo tem procurado contemplar, tanto a construção continuada e levada adiante por governos anteriores, quanto o choque anti-direitos e o desmonte provocados pelo governo atual de Jair Bolsonaro, com especial foco na destruição dos direitos humanos no país ao longo dos quatro anos de sua gestão.
A urgência do debate justifica-se por pelo menos dois caminhos. Primeiramente, por razões históricas, há que se reconhecer a necessidade da priorização das questões raciais no Brasil, da assunção do compromisso ético de reparação histórica para com a população negra que viveu e ainda vive, sistematicamente, os deletérios efeitos advindos dos mais de três séculos de exercício de uma política escravocrata, logo violenta, exterminadora e desumanizante, atualizada constantemente pelas malhas do racismo estrutural brasileiro.
Depois, por razões políticas e de memória político-institucional, há uma preocupação candente que nos assola na medida em que acompanhamos o retrocesso oferecido às políticas antirracistas e de promoção da igualdade racial no transcorrer das últimas gestões federais no país.
Afinal, ainda que o tracejo do fio da história inicialmente aponte para avanços do ponto de vista da institucionalização de políticas raciais promovida pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (2003-2016) com a realização de iniciativas que mantiveram seu propósito de enfrentamento das desigualdades raciais/étnicas no país, desde o governo de Michel Temer (2016-2018) e mais acentuadamente desde o governo atual de Jair Bolsonaro, tais políticas vêm sofrendo significativos ataques expressos através de ações como a não problematização das desigualdades raciais, o sucateamento, os cortes orçamentários e o congelamento deliberado, enfraquecendo aparelhos importantes para a luta antirracista no cenário brasileiro.
*Trecho extraído do site do IEA/USP